Vivemos sob condições de alienação desumanizante e
de uma subversão fetichista do estado real de coisas dentro da
consciência (muitas vezes também caracterizada como
"reificação"), porque o capital não pode exercer
as suas funções sociais metabólicas de
reprodução alargada em qualquer outra direcção.
Mudar estas condições exige uma intervenção
consciente em todos os domínios e a todos os níveis da nossa
existência individual e social. É por isto que, segundo Marx, os
seres humanos devem mudar "dos pés à cabeça as
condições da sua existência industrial e política, e
consequentemente
toda a sua maneira de ser
".
Marx também enfatizou o facto de que – se estivermos à
procura do ponto Arquimediano a partir do qual as contradições
mistificadoras da nossa ordem social podem ser tornadas tanto
inteligíveis como superáveis – encontramos na raiz de todas
as variedades de alienação a historicamente desvelada
alienação do trabalho:
um processo de
auto-alienação
escravizante. Mas precisamente porque estamos preocupados com um
processo histórico,
imposto não por uma agência exterior mítica de
predestinação metafísica (caracterizada como a
inelutável "condição humana"), nem sem dúvida por uma "natureza humana" imutável
– o modo como muitas vezes este problema é tendenciosamente
descrito, – mas pelo próprio trabalho, é possível
ultrapassar a alienação
através de uma
reestruturação radical
das nossas condições de existência há muito
estabelecidas, e por conseguinte "toda a nossa maneira de ser".
Consequentemente, a necessária intervenção consciente no
processo histórico, orientado pela tarefa adoptada de ultrapassar a
alienação através de um novo metabolismo reprodutivo
social dos "produtores livremente associados", este tipo de
acção estrategicamente sustentada não pode ser apenas uma
questão de negação, não importa quão
radical. Pois na visão de Marx todas as formas de negação
permanecem condicionadas pelo objecto da sua negação. E de facto
pior que isso. Como a amarga experiência histórica nos demonstrou
amplamente no passado recente, a inércia condicionadora do objecto
negado tende a crescer de poder com o passar do tempo, impondo primeiro a busca
de "uma linha de menor resistência" e subsequentemente –
com uma cada vez maior intensidade – a "racionalidade" de
regressar às "práticas testadas" do
status quo ante,
as quais são obrigadas a sobreviver nas dimensões não
reestruturadas da ordem anterior.
É aqui que a educação – no sentido mais abrangente do
termo, como foi examinado acima – aparece. Inevitavelmente, os primeiros
passos de uma grande transformação social na nossa época
envolvem a necessidade de manter sob controlo o estado político hostil
que se opõe, e pela sua própria natureza se deve opor, a qualquer
ideia de uma reestruturação societária abrangente. Neste
sentido a
negação radical
da estrutura completa de comando político do sistema estabelecido deve
afirmar-se, na sua inevitável negatividade predominante, na
fase inicial
da transformação planeada. Mas mesmo nessa fase, e de facto
antes da conquista do poder político, a negação
necessária é adequada para o seu papel assumido apenas se for
enformado positivamente pelo
alvo global
da transformação social contemplada, como a
bússola
de toda a caminhada. Portanto o papel da educação é de
importância vital desde o início para quebrar a
interiorização prevalecente das escolhas políticas
confinadas à "legitimação constitucional
democrática" do Estado capitalista nos seus próprios
interesses. Pois também esta
"contra-interiorização" (ou
contra-consciência") exige a antecipação dos contornos
positivos abrangentes de uma forma radicalmente diferente de gerir as
funções globais de decisão da sociedade, muito para
além da expropriação do poder de tomar todas as
decisões fundamentais há muito estabelecidas, assim como das suas
imposições sem cerimónia aos indivíduos,
através de políticas como a forma de alienação por
excelência na ordem existente.
Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é
incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O
conceito de
ir para além do capital
é inerentemente
positivo.
Ele tem em vista a realização de uma ordem social
metabólica que
positivamente se sustente a si própria,
sem nenhuma referência auto-justificante aos males do capitalismo.
Deve ser este o caso dado que a negação directa das várias
manifestações de alienação é ainda
condicionado por aquilo que ela nega, e portanto permanece vulnerável em
virtude dessa condicionalidade.
A estratégia reformista da defesa do capitalismo é de facto
baseada na tentativa de postular um mudança gradual na sociedade
através da qual se removem
defeitos específicos,
de forma a sabotar a base sobre a qual as reivindicações para um
sistema alternativo
podem ser articuladas. Isto é factível só numa teoria
tendenciosamente ficcional, uma vez que os remédios preconizados das
"reformas" na prática são estruturalmente
irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Desta
forma torna-se claro que o objecto real do reformismo não é de
forma alguma aquele que reivindica para si próprio: o remédio
verdadeiro dos inegáveis defeitos específicos, mesmo que a sua
magnitude seja deliberadamente minimizada, e mesmo que o caminho projectado
para lidar com eles seja auto-indulgentemente admitido como muito lento. O
único termo que tem de facto um sentido objectivo neste discurso
é "
gradual
", e mesmo este é loucamente inflacionado dentro de uma
estratégia global, a qual não pode ser alcançada. Pois os
defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser
observados superficialmente, quanto mais curados genuinamente, sem os referir
ao
sistema como um todo
que necessariamente os produz e constantemente os
reproduz.
A recusa reformista em dirigir-se às contradições do
sistema
existente, em nome da legitimidade assumida de lidar
apenas com as manifestações particulares
– ou nas suas variações pós-modernas, a
rejeição apriorística das chamadas "
grandes narratives
" em nome de "
petits récits
" idealizados arbitrariamente – é na realidade apenas uma
forma peculiar de rejeitar sem uma análise adequada a possibilidade de
qualquer sistema rival, e uma forma igualmente apriorística de
eternizar
o sistema capitalista. O objecto real da justificação
reformista é, de forma especialmente mistificadora, o sistema dominante
como tal, e não as partes quer do sistema rejeitado quer do defendido,
não obstante o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos
proponentes da "mudança gradual".
O necessário fracasso em revelar a verdadeira
preocupação do reformismo decorre da sua incapacidade para
sustentar a
validade intemporal
da ordem política e sócio-económica estabelecida.
É, na realidade, totalmente inconcebível sustentar a validade
intemporal e a permanência de qualquer coisa
criada historicamente.
É isto que torna inevitável, em todas as variedades
sócio-políticas do reformismo, tentar e desviar a
atenção das determinações
sistémicas
– que no final de contas definem o carácter de todos os assuntos
vitais – para disputas mais ou menos aleatórias sobre
efeitos
específicos enquanto deixam a sua incorrigível
base causal
não só incontestavelmente permanente como também omissa.
Tudo isto permanece escondido pela própria natureza do discurso
reformista. E precisamente devido ao carácter mistificador de tal
discurso cujos elementos fundamentais muitas vezes permanecem escondidos
até para os seus ideólogos, não tem qualquer
importância para os fiéis deste credo que num determinado momento
da história – como com a chegada do "New Labour" e do seu
irmão na Grã-Bretanha –e partidos irmãos na Alemanha,
França, Itália e em qualquer outro lado – a própria
ideia de uma qualquer reforma social significativa seja completamente
abandonada, e contudo as reivindicações de um
"avanço" aparente (que não levam a parte alguma
realmente diferente) são dissimuladamente reafirmadas. Assim mesmo as
antigas diferenças entre os principais partidos são
convenientemente obliteradas no agora dominante estilo americano do sistema de
"dois partidos" (um partido), não importa quantos
"sub-partidos" possam ainda encontrar-se em determinados
países. O que permanece constante é a defesa mais ou menos
oculta das actuais
determinações sistémicas
da ordem existente. O axioma pernicioso a asseverar que "
não há alternativa
" – falando não apenas sobre determinadas
instituições políticas mas sobre a ordem social
estabelecida em geral – é tão aceitável para a
anterior primeira-ministra do Partido Conservador Britânico, Margaret
Thatcher (que o patrocinou e popularizou), como para o chamado "New
Labour" do actual primeiro-ministro Tony Blair, assim como para muitos
outros no espectro político parlamentar mundial.
Tendo em vista o facto de que o processo de reestruturação
radical deve ser orientado pela estratégia de uma positiva reforma
abrangente de todo o sistema no qual se encontram as pessoas, o desafio que tem
de ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o
cumprimento desta nova tarefa histórica envolve simultaneamente a
mudança qualitativa das condições objectivas de
reprodução societária, no sentido de reconquistar o
controle total do próprio capital – e não simplesmente das
personificações do capital que afirmam os imperativos do sistema
como capitalistas devotados – e a
transformação progressiva da consciência
em resposta às condições necessariamente cambiantes.
Portanto o papel da educação é supremo tanto para a
elaboração de estratégias apropriadas, adequadas a mudar
as condições objectivas de reprodução, como para a
auto-mudança consciente
dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma
ordem social metabólica radicalmente diferente. É isto que se
quer dizer com a visão de uma "sociedade de produtores livremente
associados". Portanto, não é surpreendente que na
concepção marxista a
"transcendência positiva da auto-alienação do
trabalho"
seja caracterizada como uma tarefa inequivocamente educacional.
A este respeito dois conceitos chave devem ser mantidos sob a nossa
atenção: a
universalização da educação
e a
universalização do trabalho como uma actividade humana
auto-satisfatória.
De facto nem uma das duas é viável sem a outra. Nem é
possível pensar na sua estreita inter-relação como um
problema para um futuro muito distante. Ele levanta-se "aqui e
agora", e é relevante para todos os níveis e graus de
desenvolvimento sócio-económico. Podemos encontrar um exemplo
proeminente disto num discurso de Fidel Castro em 1983, relativo aos problemas
que Cuba tinha de enfrentar através da aceitação do
imperativo da
universalização da educação,
apesar das dificuldades aparentemente proibitivas não só em
termos económicos mas também em conseguir os professores
necessários. Foi assim que ele resumiu o problema:
"A la vez habíamos llegado ya a una situación en que el estudio se universalizaba. Y para universalizar el estudio en un país subdesarrollado y no petrolero – digamos –, desde el punto de vista económico era necesario universalizar el trabajo. Pero aunque fuésemos petroleros, habría sido altamente conveniente universalizar el trabajo, altamente formativo en todos los sentidos, y altamente revolucionario. Que por algo estas ideas fueron planteadas hace mucho tiempo por Marx y por Martí."
As extraordinárias realizações educacionais em Cuba, desde
a eliminação rápida e total do analfabetismo até
aos mais elevados níveis de pesquisa científica criadora
– num país que tinha de lutar não só contra os
constrangimentos económicos maciços do subdesenvolvimento como
também contra o sério impacto de 45 anos de bloqueio hostil
– são compreensíveis apenas em face deste enquadramento.
Esta realização também demonstrou que não pode
existir justificação para esperar a chegada de um
"período favorável", no futuro indefinido.
Avançar na estrada de uma abordagem qualitativamente diferente à
educação e à aprendizagem pode e deve começar
"aqui e agora", como indicado acima, se quisermos alcançar as
mudanças necessárias no momento oportuno.
Não pode existir uma solução positiva para a
auto-alienação do trabalho sem promover conscientemente a
universalização conjunta do trabalho e da educação.
Contudo, no passado poderia não existir uma possibilidade real para
isto devido à subordinação estrutural hierárquica e
à dominação do trabalho. Nem mesmo quando alguns grandes
pensadores tentaram conceptualizar estes problemas com um espírito mais
progressista. Assim, Paracelso, um modelo para o
Fausto
de Goethe, tentou universalizar o trabalho e a aprendizagem deste modo:
"embora o homem tenha sido criado inteiro relativamente ao seu corpo, ele não foi assim criado relativamente à sua 'arte'. Todas as artes lhe foram dadas, mas não numa forma imediatamente reconhecível; ele deve descobri-las através da aprendizagem. … A maneira adequada reside no trabalho e na acção, em fazer e produzir; o homem perverso nada faz, mas fala muito. Não devemos julgar um homem pelas suas palavras mas antes pelo seu coração. O coração fala através de palavras apenas quando elas são confirmadas por acções. … Ninguém vê o que está nele escondido, mas só o que o seu trabalho revela. Portanto o homem deveria trabalhar continuamente para descobrir o que Deus lhe deu".
De facto, Paracelso afirmava que o trabalho
(Arbeit)
devia ser o princípio geral ordenador da sociedade. Ele foi mesmo ao
ponto de defender a expropriação da fortuna dos bens dos ricos
ociosos, de forma a compeli-los a terem uma vida produtiva.
Como podemos ver, a ideia de universalizar o trabalho e a
educação, na sua indissociabilidade, remonta há muito na
história. É portanto muito significativo que esta ideia tenha
permanecido apenas como uma ideia bastante frustrada, dado que a sua
realização pressupõe necessariamente a
igualdade substantiva
de todos os seres humanos. O facto grave de que o desumanizante
tempo de trabalho
dos indivíduos seja também a maior parte do seu
tempo de vida,
teve de ser rigidamente ignorado. As funções
controladoras
da reprodução metabólica social tiveram de ser separadas
e opostas à esmagadora maioria da humanidade, destinada à
execução de tarefas subordinadas num determinado sistema
político e sócio-económico. No mesmo espírito,
não só o controlo do trabalho estruturalmente subordinado como
também a dimensão do controle da educação tinha de
ser mantido num compartimento separado, sob o domínio das
personificações do capital na nossa época. É
impossível mudar a relação de dominação
estrutural e subordinação sem a percepção da
verdade –
substantiva
e não apenas
igualdade formal
(que é sempre profundamente afectada, se não completamente
anulada pela dimensão substantiva realmente existente). É por
isto que apenas dentro da perspectiva de ir
para além do capital
o desafio de universalizar o trabalho e a educação, na sua
indissolubilidade, pode surgir na agenda histórica.
Na concepção de educação há muito dominante
os governantes políticos e os governados, assim como os privilegiados
educacionalmente (quer se trate dos indivíduos empregados como
educadores ou como administradores no controlo das instituições
educacionais) e aqueles que têm de ser educados, aparecem em
compartimentos separados, quase estanques. Um bom exemplo desta visão
é expresso no artigo sobre "Educação" publicado
na reputada e culta última edição da
Encyclopaedia Britannica.
E diz o seguinte:
"A acção do Estado moderno não pode parar um pouco antes da educação elementar. O princípio da "carreira aberta ao talento" não é mais um assunto de teoria humanitária abstracta, uma aspiração fantástica de sonhadores revolucionários; para as grandes comunidades industriais do mundo moderno é uma necessidade prática convincente imposta pela concorrência internacional feroz que prevalece nas artes e nas indústrias da vida. A nação que não queira falhar na luta pelo êxito comercial, com tudo o que isso implica para a vida nacional e para a civilização, deve considerar que as suas indústrias sejam alimentadas com uma oferta constante de trabalhadores adequadamente equipados tanto em termos de inteligência geral como de treino técnico. Também no terreno político, a crescente democratização das instituições torna uma vasta difusão de conhecimentos e o florescimento de um alto padrão de inteligência entre o povo um cuidado evidente do estadista prudente, especialmente para os grandes Estados imperiais, os quais confiam as mais momentosas questões do mundo político ao arbítrio da voz popular ".
Mesmo nos seus próprios termos de referência este artigo
académico – sem dúvida impressionante na sua
avaliação histórica – é bastante defeituoso,
devido a razões ideológicas claramente identificáveis.
Pois exagera grandemente os efeitos benéficos da
"concorrência internacional feroz" de capitais nacionais sobre
a educação do povo trabalhador. O livro profundo de Harry
Braverman intitulado
"The Degradation of Work in the Twentieth Century"
faz uma avaliação incomparavelmente melhor das forças
alienantes e brutalizantes em acção na moderna empresa
capitalista. Elas lançam uma luz negativa penetrante sobre a
deturpação da "luta pelo êxito comercial" acerca
da qual o autor deste artigo postula um impacto "civilizador" quando
na realidade muitas vezes o resultado necessário é diametralmente
oposto. E mesmo relativamente a empresas industriais específicas, a
chamada "gestão científica" de Frederic Winslow Taylor
revela o segredo de quão elevados devem ser os requisitos
educacionais/intelectuais das firmas capitalistas para dirigirem uma
operação competitivamente bem sucedida. Como F. W. Taylor, o
fundador deste sistema de controlo de gestão, escreve com um
indisfarçado cinismo:
"Um dos primeiros requisitos para um homem ser apto a lidar com ferro-gusa como ocupação regular é que ele deve ser tão estúpido e tão fleumático que mais se assemelhe no seu quadro mental a um boi do que a qualquer outro tipo. … O operário que melhor se adequa a lidar com ferro-gusa é incapaz de compreender a verdadeira ciência de realizar esta classe de trabalho. Ele é tão estúpido que a palavra 'percentagem' não tem qualquer significado para ele. "
De facto muito científico! Quanto à proposição
segundo a qual "uma ampla difusão de conhecimento e o cultivo de um
alto padrão de inteligência" é o objectivo felizmente
adoptado pelo moderno estado capitalista – "
especialmente para os grandes estados imperiais que confiam os assuntos mais
importantes da política mundial à decisão da voz popular
" – é ridículo demais e obviamente muito
apologético no carácter para ser considerado, sequer por um
momento, como argumento sério a favor das causas invocadas de melhoria
da educação inspiradas democraticamente e politicamente
iluminadas sob as condições de domínio do capital sobre a
sociedade.
EDUCAÇÃO
para além do capital
contempla uma ordem social qualitativamente diferente. Agora não
só é possível embarcar na estrada que nos leva até
essa ordem como também é necessário e urgente. Pois as
incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente
tornam imperativo contrapor aos antagonismos estruturais
irreconciliáveis do sistema capitalista uma
alternativa positiva
sustentável para a regulação da reprodução
metabólica social se quisermos assegurar as condições
elementares da sobrevivência humana. O papel da educação,
orientado pela única perspectiva positivamente viável de ir para
além do capital, é absolutamente crucial a este propósito.
A
sustentabilidade
equivale ao
controlo consciente
pelos produtores associados livremente do processo de reprodução
metabólico social, em contraste com a indefensável,
estruturalmente estabelecida
rivalidade
e destrutibilidade última da ordem reprodutiva do capital. É
inconcebível ocasionar este controlo consciente dos processos sociais
– uma forma de controlo que por acaso também é a
única forma possível de
auto-controlo:
o requisito necessário para serem
produtores associados livremente
– sem activar totalmente os recursos da educação no sentido
mais amplo do termo.
O grave e inultrapassável defeito do sistema capitalista consiste na
alienação de mediações de segunda ordem que
têm de ser impostas a todos os serem humanos, incluindo as
personificações do capital. De facto, o sistema capitalista
não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas
mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a
relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho na sua
subordinação estrutural ao capital. Elas são
necessariamente interpostos entre indivíduos e indivíduos, assim
como entre indivíduos particulares e as suas aspirações,
virando os últimos de "cabeça para baixo" e
"às avessas", de forma a conseguir subordiná-los a
imperativos fetichistas do sistema capitalista. Por outras palavras, estas
mediações de segunda ordem impõem uma
forma alienada de mediação
à humanidade. A
alternativa positiva
a esta forma de controlar a reprodução metabólica social
apenas pode ser a
auto-mediação,
na sua inseparabilidade do
auto-controlo
e da
auto-realização através da liberdade e igualdade
substantiva,
numa ordem social reprodutiva conscientemente regulada pelos
indivíduos associados. É também inseparável dos
valores
escolhidos pelos próprios indivíduos, de acordo com as suas
necessidades genuínas, em vez de lhes serem impostos – sob a forma
de
apetites
perfeitamente
artificiais
pelos imperativos reificados da acumulação lucrativa do capital,
como é o caso hoje. Nenhum destes objectivos emancipadores é
concebível sem a intervenção mais activa da
educação entendida na sua orientação positiva no
sentido de uma ordem social para além do capital.
Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mínimos da
realização humana são insensivelmente negados à
esmagadora maioria da humanidade, enquanto a produção de
desperdício assumiu proporções proibitivas, de acordo com
a mudança da reclamada "
destruição produtiva
" do capitalismo no passado para a realidade mais dominante hoje da
produção destrutiva.
As desigualdades sociais gritantes em evidência actualmente, e ainda
mais pronunciadas no seu desvelado desenvolvimento, são bem ilustradas
pelos seguintes números:
"Segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, o 1% mais rico do mundo recebe tanto de rendimento quanto os 57% mais pobres. O intervalo de rendimentos entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou dos 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 biliões de pessoas viviam com menos de 2 dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 biliões não tinham acesso a qualquer forma melhorada de serviços de saneamento, e uma em cada seis crianças no mundo em idade de frequentar a escola primária não estavam na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não agrícola ou está desempregada ou sub-empregada.
O que está aqui em jogo não é simplesmente o
défice de contingente
dos recursos económicos disponíveis, a serem ultrapassados mais
cedo ou mais tarde, como prometido graciosamente, mas o
défice estrutural necessário
de um sistema que opera através dos seus
círculos viciosos de desperdício e de escassez.
É impossível sair deste círculo vicioso sem a
intervenção positiva da educação, capaz
simultaneamente de
estabelecer prioridades
e de definir as
genuínas necessidades
com as totais e livres deliberações dos indivíduos em
causa. De outro modo, a escassez pode ser e será reproduzida numa
escala sempre crescente, em conjunção com a geração
de necessidades artificiais absolutamente devastadora, como tem sido feito
actualmente, ao serviço loucamente orientada auto-expansão do
capital e da acumulação contra-producente.
Uma concepção rival positivamente articulada de
educação
para além do capital
não pode ser confinada a um número limitado de anos na vida dos
indivíduos mas, devido às suas funções radicalmente
mudadas, abarca-os a todos. A "auto-educação de
iguais" e a "auto-gestão da ordem social reprodutiva"
não podem ser separadas uma da outra. A auto-gestão – pelos
produtores livremente associados – das funções vitais do
processo metabólico social é um empreendimento
progressivo
– e inevitavelmente
em mudança.
O mesmo vale para as práticas educacionais que habilitam o
indivíduo
a realizar essas funções como constantemente redefinidas por eles
próprios, de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles
são agentes activos. A educação, neste sentido, é
verdadeiramente "
educação contínua
". Nem pode ser "vocacional" (o que significa nas nossas
sociedades o confinamento das pessoas envolvidas a funções
utilitaristas estreitamente pré-determinadas, privadas de qualquer poder
decisório), nem "geral" (que deve ensinar aos
indivíduos, de forma paternalista, as "artes do pensamento").
Estas noções são as presunções arrogantes de
uma concepção baseada numa totalmente insustentável
separação das dimensões prática e
estratégica. Portanto a "educação
contínua", como um constituinte necessário dos
princípios reguladores de uma sociedade para além do capital,
é inseparável da prática significativa da
auto-gestão.
É uma parte integral desta última quer como
representação no início da
fase de formação
na vida dos indivíduos, e, por outro lado, no sentido de permitir um
feedback positivo
dos indivíduos educacionalmente enriquecidos, com as suas necessidades
mudando apropriadamente e redefinidas equitativamente, para a
determinação global dos princípios orientadores e
objectivos da sociedade.
A nossa graduação histórica é definida pela
crise estrutural
do
sistema capitalista global.
Está na moda falar, com total auto-complacência, sobre o grande
êxito da globalização capitalista. Um livro recentemente
publicado e propagandeado devotamente tem o título:
Why Globalization Works. Contudo o autor, que é o
Chief Economics Commentator
do
Finantial Times
de Londres, esquece-se de fazer a pergunta realmente importante:
Para quem é que funciona?,
se é que funciona. Certamente funciona, por enquanto, e de modo algum
assim tão bem, para os decisores do capital transnacional, mas
não para a esmagadora maioria da humanidade que tem de sofrer as
consequências. E nenhuma quantidade de
"integração jurisdicional"
advogada pelo autor – isto é, em inglês simples, o controle
directo mais apertado dos deplorados "demasiados estados" por uma
mão cheia de poderes imperialistas, especialmente o maior deles –
vai conseguir remediar a situação. Na realidade a
globalização capitalista não funciona nem pode funcionar.
Pois não pode ultrapassar as contradições
irreconciliáveis e os antagonismos manifestos através da crise
estrutural global do sistema. A própria globalização
capitalista é a manifestação contraditória dessa
crise, tentando vencer a relação
causa/efeito
numa tentativa vã de curar alguns efeitos negativos através de
outros
efeitos desejadamente projectados,
porque é estruturalmente incapaz de se dirigir às suas
causas.
A nossa época de
crise estrutural global
do capital é também a época histórica de
transição
da ordem social existente para uma qualitativamente diferente. Estas
são as duas características fundamentais definidoras do
espaço histórico e social no seio do qual os grandes desafios
para quebrar a lógica do capital, e ao mesmo tempo também a
elaboração de planos estratégicos para a
educação para além do capital, devem ser conhecidos.
Portanto a nossa tarefa educacional é simultaneamente a tarefa de uma
transformação social ampla emancipadora. Nenhuma das duas pode
ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A
transformação social emancipadora radical requerida é
inconcebível sem a contribuição positiva mais activa da
educação no seu sentido amplo, como foi descrito nesta palestra.
E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no
ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente
no seu interrelacionamento dialéctico com as condições em
mudança e as necessidades da transformação social
emancipadora progressiva. As duas têm êxito ou falham,
sustêm-se ou caem juntas. Cabe-nos a
todos
– todos, porque sabemos bem demais que "os educadores também
têm que ser educados" – a sua manutenção e
não a sua queda. Os riscos são demasiadamente elevados para se
contemplar a hipótese de fracasso.
Neste empreendimento as tarefas
imediatas
e os seus
enquadramentos estratégicos
globais não podem ser separados, e opostos, uns aos outros. O
êxito estratégico é impensável sem a
realização das tarefas imediatas. De facto, o próprio
enquadramento estratégico é a síntese global de
inúmeras, sempre renovadas e expandidas, tarefas imediatas e desafios.
Mas a solução dos últimos é possível apenas
se a abordagem ao imediato for informada pela sintetização do
enquadramento estratégico. Os passos mediadores em
direcção ao futuro – no sentido da única forma
viável de
auto-mediação
– apenas podem iniciar-se do
imediato,
mas iluminados pelo espaço que pode legitimamente ocupar na
estratégia global orientada pelo futuro contemplado.
[*] Intervenção na abertura no Fórum Mundial de Educação, Porto Alegre, Brasil, 28/Jul/2004. Tradução de T. Brito.
Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .
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