Judith Butler vem aí, trazendo a peste: bem-vinda
Quando Freud chegava aos Estados
Unidos, disse com ironia a um interlocutor que o acompanhava: eles não
sabem que lhes trago a peste. A anedota é contestada por seus biógrafos,
mas vale como alusão simbólica: a psicanálise destroçava o mito liberal
do ator racional, auto-consciente, fundamento da antropologia rasteira,
dominante na classe média americana. O novo saber subvertia a
consagração do american way of life, utopia dos subúrbios, que
Hollywood espalhava pelo mundo, colonizando sentimentos e capturando
esperanças. Era mesmo a peste que desembarcava em solo americano.
Judith
Butler está chegando ao Brasil. Não é a primeira vez, mas certamente
ela nunca havia sido recepcionada, nem aqui nem no mais obscurantista
dos recantos do planeta, por 100 mil assinaturas contra sua visita e
suas palestras. Eu quase escrevo: não sabia que ela se tornara tão
popular nas terras de Vera Cruz, no país dos Papagaios, depois nomeado
Brasil. Cem mil leitores de sua obra não gostam dela, não gostam mesmo,
enfática e furiosamente, a ponto de se ocuparem em expressar sua opinião
publicamente. Imagino que os leitores que apreciam seus livros sejam
ainda mais numerosos. Que nação incrível nós seríamos. Mas não é nada
disso. Duvido que haja alguém que, tendo lido e compreendido os escritos
de Butler, mesmo discordando, cometesse o despautério –que macula ainda
mais nossa imagem internacional- de repudiar sua vinda e a realização
de suas palestras. O famigerado abaixo assinado é um análogo da queima de livros. Quanto falta para a pira sacrificial da inteligência? Nada, ouso afirmar que não falta nada.
Curioso,
quase cômico (não fora trágico), é o seguinte paradoxo: para uma
sociedade povoada por empreendedores da ignorância exibicionista, o pensamento de Judith Butler é mesmo a peste.
O fato dos signatários do tal manifesto existirem, justifica o
manifesto: os sócios do repúdio à autora têm mesmo motivos para temer,
temer confrontar-se com o que não podem saber sem sofrerem a metamorfose
que os transformará no que temem, e por isso odeiam e exorcizam. Eis aí
Freud redivivo. Essa massa de gente cheia de rancor e ressentimento
está apavorada com a emergência do feminino e, mais do que isso, com a
superação das classificações que aprisionam os sujeitos em quadros
classificatórios –porque, afinal, não faz sentido sair do armário e
entrar na gaveta. Essa turba teme o distúrbio ontológico que resultaria
da supressão das âncoras dos gêneros. Os signatários temem um encontro
cara a cara consigo mesmos e com seus demônios.
Butler é uma de minhas principais referências intelectuais.
Sou
professor universitário há 42 anos e desde o começo dos anos 1990
incluo seus livros e artigos na bibliografia de meus cursos. Sua obra
circula entre nós há décadas. Butler opera uma articulação engenhosa e
criativa entre a antropologia, o desconstrucionismo derridiano, a
filosofia da linguagem pós-wittgensteiniana, com destaque para o
pensamento de Austin e Searle, o neopragmatismo de Richard Rorty, a
psicanálise lacaniana reapropriada criticamente por Gilles Deleuze e a
tradição interacionalista, cuja raiz remete à escola sociológica de
Chicago e desagua, desde fins dos anos 1950 e começo dos 60, em autores
como Goffman, retomado por Michel Foucault. A produção de Judith Butler
demonstra a centralidade, a complexidade e a sofisticação do pensamento
feminista em nosso tempo.
Rebanhos,
cheiros e sinais diacríticos estão formando o segmento conservador da
opinião pública brasileira. Reações são provocadas pelo odor que se
desprende dos animais percebidos como perigosos: os inimigos. Hordas de
bípedes coléricos deixam-se tanger por sinais simplificadores,
dualistas, maniqueístas. O Leviatã social está sendo gestado por uma
corrente produtora de automatismos, condicionados por palavras de ordem e
fórmulas ideológicas triviais. Esse é um sintoma grave, muito grave, e
deveria preocupar inclusive os conservadores sensíveis, informados e
inteligentes, porque se o Leviatã social triunfar, não haverá espaço nem
para eles (e elas), uma vez que toda inteligência será banida e a
informação de qualidade, incinerada.
Luiz Eduardo Soares é
antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da
UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais
recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das
Letras, 2015).
Acesse o link e assine a petição pública pela vinda da filósofa norte americana ao Brasil: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR102793
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